O intuito do presente é analisar a possibilidade de aplicação da minorante prevista no parágrafo 4º do art. 33 da Lei 11.343/06 aos casos em que “mulas” do tráfico são presas em flagrante transportando grande quantidade de droga.
Inicialmente, destacamos que o denunciado por tráfico de drogas (art. 33, caput e parágrafo 1º da Lei 11.343/06) se – cumulativamente – for primário, de bons antecedentes, não se dedicar às atividades criminosas nem integrar organização criminosa, poderá ter sua pena reduzida de um sexto a dois terços – a essa possibilidade de redução de pena, deu-se o título de “tráfico privilegiado”.
Parece-nos óbvio, ademais, a partir da leitura dos requisitos objetivamente previstos no parágrafo 4º do art. 33 da Lei 11.343/06, que a quantidade de droga apreendida não impede a aplicação da redutora – ao menos não há previsão legal para tanto.
A típica “mula” do tráfico, por sua vez, é pessoa primária, sem antecedentes e sua função é transportar drogas – em grande quantidade – entre municípios, estados ou países.
Ocorre que, há uma crescente tendência de afirmar-se que a quantidade de drogas transportada é – presumidamente – demonstração do alto grau de confiabilidade que a organização criminosa detém no “transportador” e, portanto, “suficiente” para comprovar o vínculo desse como integrante da organização[1]. Consequentemente, conforme exposto, se o acusado se dedicar às atividades criminosas e/ou integrar organização criminosa, não se aplica a minorante do tráfico privilegiado – por ausência do preenchimento dos requisitos objetivos.
Os tribunais, com melhor sorte, possuem julgados no sentido de que: a grande quantidade de drogas não gera presunção de habitual dedicação a atividades criminosas e participação em organização criminosa, in verbis:
[…] 2. O fundamento utilizado pelas instâncias de origem para afastar o reconhecimento do tráfico privilegiado foi a presunção de que a expressiva quantidade de entorpecentes seria indicativo de que o paciente não era traficante eventual, sem, contudo, haver a demonstração, por meio de elementos concretos extraídos dos autos, de que ele se dedicava a atividades criminosas ou mesmo que integrasse organização criminosa. 3. Precedentes deste Corte e do Supremo Tribunal Federal firmam a possibilidade de concessão do benefício do tráfico privilegiado, a despeito da apreensão de grande quantidade de droga, quando estiver caracterizada a condição de mula do tráfico. Precedentes. 4. No caso, inexiste óbice à aplicação da referida causa de diminuição, especialmente se considerado que o paciente foi flagrado transportando as drogas em seu veículo, entre duas cidades, o que caracteriza da função de mula do tráfico. Ademais, o acusado efetivamente é primário, possuidor de bons antecedentes, não sendo possível, através dos elementos existentes no feito, assegurar que possui a vida voltada ao ilícito, conforme expressamente ressaltado pela sentença condenatória. – Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no HC 686.647/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 24/08/2021, DJe 30/08/2021).
Mais, para além do entendimento jurisprudencial supra referido, conforme assentado na doutrina: “a habitualidade e o pertencimento a organizações criminosas deverão ser comprovados, não valendo a simples presunção. Não havendo prova nesse sentido, o condenado fará jus à redução da pena”[2].
Ora, no processo penal a única presunção existente deve ser a de inocência, nesse sentido:
“o afastamento da causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 exige fundamentação idônea. A ausência de provas do envolvimento em atividades criminosas ou da participação em organização criminosa deve ser interpretada em benefício do acusado e, por conseguinte, não é suficiente para afastar a aplicação da causa de redução da pena. Incidência do princípio da presunção de inocência e da regra do in dubio pro reo”[3].
Nesse diapasão, o fato de a “mula” transportar grande quantidade de droga não é prova de participação em organização criminosa, mas mera presunção – e, convenhamos, pelos motivos equivocados.
Afinal, em interpretação analógica, sabe-se que, para o reconhecimento da existência de organização criminosa é necessário, prima facie, a comprovação de estabilidade e permanência. A grande quantidade de droga apreendida comprova vínculo habitual e permanente? Nesse caso, no máximo poderíamos discutir, ausentes outras provas, vínculo eventual entre transportador e organização criminosa.
Do contrário, viveremos um delírio punitivo e admitiremos condenações com base em presunções tendenciosas no melhor estilo: se foi preso em flagrante por tráfico de drogas em uma oportunidade, presume-se que em outras ficou impune e, portanto, se dedica a atividades criminosas.
Portanto, entendemos ser equivocada a presunção de “participação em organização criminosa” com base tão somente na presunção de confiabilidade gerada pela quantidade de droga apreendida em poder da “mula”.
[1] Apelação Criminal, Nº 50728686220198210001, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio Baptista Neto, Julgado em: 09-09-2021)
[2] QUEIROZ, Paulo; LOPES, Marcus. Comentários à Lei de Drogas. 2016. P. 50.
[3] HC 103.225, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 11-10-2011, 2ª T, DJE de 22-11-2011.